A portaria assinada pelo comandante da Polícia Militar, Ricardo da Fonseca Martins, autorizando os membros da corporação a fazer bicos não ecoou bem na sociedade. A repercussão negativa do caso fez com que o oficial voltasse atrás e editasse a regulamentação um dia após dar o seu veredito. Em uma nova avaliação, ficou estabelecido que não serão permitidas atividades extras no âmbito da vigilância privada, o que já era proibido, mesmo antes de a polêmica discussão vir à tona. Porém, essa ilegalidade parece não inibir alguns donos de estabelecimentos comerciais do Distrito Federal. A pedido do Correio, a Polícia Federal fez um levantamento da quantidade de PMs atuando como vigilantes. Os números mostram que de, cada 10 casos de segurança ilegal que a Delegacia de Controle de Segurança Privada (Delesp) da PF confirmou no ano passado, quatro se referiam a PMs exercendo atividade clandestina em horário de folga.
Os dados de 2008 não estão computados, mas, somente em uma operação em agosto daquele ano, batizada de Varredura, a delegacia fiscalizou mais de 500 estabelecimentos comerciais no DF em apenas um dia. Desses, 99, ou 20%, receberam autos de infração porque havia segurança privada clandestina, incluindo a participação de policiais militares. Este ano, a Delesp já recebeu 34 queixas, mas ainda não é possível saber quantas, de fato, são atribuídas a PMs.
O chefe da unidade, delegado Flávio Maltez Coca, alerta que contratar essa mão de obra para resguardar o patrimônio configura crime de exercício ilegal da profissão e o contratante pode ser penalizado com multa ou até mesmo responder criminalmente pelo ato. “A primeira providência que tomamos ao confirmarmos uma denúncia como essa é cessar o serviço clandestino imediatamente. Nós orientamos o proprietário a regularizar a situação e indicamos todos os passos. Se ele reincidir, pode ser multado ou até mesmo ser coautor de um crime. Os prejuízos são muitos e não vale a pena arriscar”, recomendou Coca.
Já o policial militar que estiver no posto irregularmente será conduzido à delegacia mais próxima e assinará um Termo Circunstanciado (quando o crime é de menor potencial ofensivo). Sua situação será levada ao conhecimento da Corregedoria da PM. “Fazemos um trabalho de campo bastante criterioso antes da abordagem, pois muitas denúncias não se confirmam. Às vezes, pode se tratar de um comerciante querendo prejudicar o concorrente e temos que fazer um serviço de checagem mais cuidadoso”, completa Coca.
Pouca mudança
Para o secretário-geral do Sindicato dos Vigilantes do DF, Moisés Alves da Consolação, a retificação da portaria assinada pelo comandante da PM na primeira semana deste mês não culminará em mudanças práticas. “Há muito tempo que policiais fazem isso (segurança privada) e a PM sempre fez vista grossa. Não vai ser agora que vai mudar a postura. Não vão fiscalizar e muito menos punir. Eu quero que eles me apresentem um policial militar que foi punido por fazer vigilância privada no DF”, desafiou Moisés.
No ano passado, um levantamento feito pela equipe de fiscalização da entidade sindical identificou 295 pontos em que haviam PMs atuando como vigias, mas, segundo Moisés, os números nem de longe refletem a realidade. “Temos uma equipe limitada que, mesmo assim, conseguiu flagrar quase 300 casos, mas sabemos que esse número é insignificante. Estimamos que haja pelo menos uns 700 policiais ocupando a posição de vigilantes formados”, estima.
O mapa mostra que as cidades do DF são as que mais absorvem essa mão de obra clandestina. Samambaia é a região administrativa onde, segundo o sindicato, existem mais policiais militares exercendo a atividade ilegal: 33 no total. Taguatinga aparece logo atrás, com 24, seguida do Gama (21) e de Planaltina (20).
Tolerância será zero
O chefe do Departamento de Comunicação Social da PMDF, coronel Carlos Alberto Teixeira, rebateu as acusações do sindicalista e garantiu que o comando não será tolerante nem corporativista com o policial flagrado extrapolando suas atribuições. De acordo com ele, a punição para esse tipo de conduta pode ir desde uma simples advertência verbal até a demissão do serviço público. “O comando já deixou claro o que pode e o que não pode. Quem não se enquadrar responderá a um processo administrativo e, dependendo da gravidade da situação, poderá ser demitido da corporação”, alertou o oficial.
Não é de hoje que a profissão de vigilância privada é motivo de discussão. Em fevereiro de 2002, diante das inúmeras denúncias de PMs trabalhando como vigias em todo o Brasil, o Ministério da Justiça baixou uma resolução recomendando aos comandantes que não permitam que a tropa realize esse tipo de atividade. A Resolução nº 4, de 20 de fevereiro de 2002, estabelece diretrizes de procedimentos a serem adotados pela Polícia Militar em relação às atribuições legais. No seu artigo 4º, recomenda-se aos estados e ao Distrito Federal que não utilizem o efetivo policial em atividades de segurança patrimonial, em serviços de vigilância e proteção a prédios públicos.
No entendimento do especialista em segurança pública Antônio Testa, da Universidade de Brasília (UnB), o policiamento poderia ser mais presente nas ruas se a escala de serviço dos PMs fosse alterada. Hoje, a escala de plantão permite ao policial ficar até três dias em casa. “Defendo uma alteração na escala de serviço. Lógico que isso deve ser feito baseado em um estudo. É impossível alguém trabalhar com qualidade 24 horas seguidas. Ele (o policial) vai para casa muito desgastado, descansará oito, 10 horas e, no tempo ocioso, vai procurar algo para fazer. Muitos optam por complementar a renda com o serviço extra. Talvez uma escala em que ele trabalhasse 12 horas e folgasse apenas dois dias seria mais viável e daria à população mais sensação de segurança”, analisou Testa.
Complemento para a renda
O coronel da PM Nelson Gonçalves há 23 anos ministra aulas em faculdades. Ele já trabalhou tanto em regime de escala de plantão quanto em expediente e garante que sempre conseguiu administrar bem a dupla jornada. No caso de Nelson, mesmo antes de a portaria ser publicada, não havia nenhuma ilegalidade em trabalhar como militar e docente, pois a corporação já permitia que o PM acumulasse funções de professor e médico, desde que a prioridade fosse a farda.
Para o oficial, as profissões se complementam. “Na atividade de docente, você pode aplicar muito do que é estudado nas ruas. Assim como nas ruas, você capta informações que podem ser relevantes para os alunos. É possível estabelecer uma troca de experiências que te enriquece em todos os sentidos e contribui nas duas funções”, avalia Nelson, que faz questão de destacar que o comando está correto em vetar o bico de vigilante a PMs. “É uma função incompatível com o cargo de policial militar”, frisa.
No entanto, casos como os de Nelson ainda são minoria. A renda extra de grande parte dos militares que trabalham quando não estão fardados vem de serviço complementar em estabelecimentos comerciais e até mesmo em templos religiosos. É o caso do sargento Ronaldo (nome fictício). Há dois anos, ele trabalha como supervisor de segurança de um banco. Graduado, tem consciência de que a atividade é irregular, mas alega que o padrão de vida na capital exige que se tenha outro emprego, mesmo que informal.
“É verdade que o salário da polícia de Brasília é o melhor do país, mas quem tem três filhos, que é o meu caso, tem que fazer outra coisa se quiser colocá-los em uma escola boa, pagar plano de saúde e faculdade para a esposa. São muitos gastos que comprometem boa parte do salário pago pela polícia”, justifica. O policial diz que o bico rende por mês quase R$ 4 mil. Seu salário na Polícia Militar como terceiro-sargento é de R$ 5.227. “O salário da PM é só para pagar as despesas. O conforto à família eu dou com o dinheiro do bico”, encerra.
Balanço
Em 2009, a Delesp recebeu 235 denúncias sobre segurança clandestina no Distrito Federal. Dessas, 112 foram confirmadas após as investigações, sendo que 45 se tratavam de policiais militares.
Durante operação, 20% dos 500 estabelecimentos comerciais vistoriados utilizavam segurança clandestina.
No Distrito Federal, R$ 4 mil é o salário inicial de um soldado da Polícia Militar.
Fonte: Correio Braziliense
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